capa de Luiza Maciel Nogueira (livro em preparo)
sabedoria
vovô, pode me dizer
onde o diabo perdeu as botas?
— nem que a vaca tussa!
vovó, por que sofrer que só cego em porta de igreja?
— menino, tu tá na idade
de ser mais faceiro que ganso em taipa de açude!
me diz me conta
é no cafundó do judas
onde o vento faz a curva?
me conta me diz
quem tá matando cachorro a grito
passou a batata quente
ou tá na capa da gaita?
titia não tem barba
por que joão pediu para tirar do molho?
jessé tem cão
por que fala onde fui amarrar meu bode?
me diz me conta
sem choro nem vela
porque pergunto
e só me respondem
— será o benedito guri!
pensa que berimbau é gaita!
o poeta
para Wander Porto
— papai, o que é poeta?
os bagunceiros e arruaceiros filho!
uns sonhadores que rasgam dinheiro
desconcertam a linguagem
na lagoa no lugar do lambari
colocam um violino nadando
no céu o pampa verdejante
na planície o mar azulante
e na lapela um girassol gigante
dizem coisas inesperadas
inventam ritmos alucinantes
às vezes até sem rima
atropelam o alexandrino
contrariam as leis dos sentidos
mais confundem que esclarecem
abusam do mistério
nas suavidades e nas asperezas
da luz sob as transparências
e do vento desenhando com nuvens
formas inexatas de bichos
tornam coisas abstratas
em ideias concretas imprevisíveis
são capazes de transfigurar
qualquer lógica ou limite
para declarar o amor a paz
imprescindível e intransferível
e ao final ainda confessam
que o poema não serve para nada
assim como as auroras as utopias
o perfume das cigarras na hortelã
e a trilha das formigas cortadeiras
no jardim depois da chuva
— papai, quando crescer
posso ser poeta?
eu vi uma árvore zumbir pássaros
um castelo mugir suas muralhas
um livro zurrar suas letras
o pastor de nuvens
baliu seus cometas
o professor de desfazer coisas
ladrou a lição pela orelha
o eucalipto no jardim relinchou
seu aroma de romã
posso jurar
ter visto um cão sibilar alegria
e o pão com mel rugir:
- cuco cuco cuco
e sair trotando...
a lua cacarejou
o sol miou
a chuva cricrilou
se a moda pega
daqui a pouquinho
as quatros estações
estarão ululando
os objetos todos crocitando
pulando de um lado pro outro
grasnando
se sim não se não sim
onomatopaico embaralhou
minha mãe não aprovou e arulhou
- menino pra dentro!
meu pai gostou e coaxou
- menino pra fora!
meu avô atordoado rosnou
- guri xispa...vaza...pica a mula!
só vovó não emitiu som nenhum
nem sim nem não
nem antes nem depois
ofereceu o colo
e os sons trocados
desapareceram
para Eloí Elisabete Bocheco
meu boi barroso
meu boi araçá
tua carroça de palha
tá cheia dos butiás
adeus arambaré barra do ribeiro
tapes e outras trilhas
vou pelo atalho olhar o mar
se me perder
tava relendo cobra norato
lendas do sul
grande sertão
pé de pilão
batata cozida, mingau de cará
se o minuano não assoviar
se o boi barroso da cara preta
não tropeçar na capivara
pé dentro pé fora
digo adeus e noves fora
Descrição do Livro:
O Unicórnio do Sul e outras Lendas Poéticas está destinado a ser um livro histórico, um referencial no mercado literário e editorial nestes tempos ditos pós-modernos em que prolifera a cultura do rápido e urgente, do tecnológico e do, muitas vezes, fútil. Isso não só por ser uma feliz parceria entre um professor e uma ilustradora psicóloga, o que por si só já enseja um entendimento produtivo e harmonioso dos autores na criação da obra, o que, sem dúvida, favorece e facilita a compreensão do conteúdo; nem tampouco somente por serem os dois, José Couto e Luiza Maciel Nogueira, poetas, cuja sensibilidade aguçada busca luz para afugentar as sombras que insistem em ocultar o lúdico e dificultar a formação do pensamento crítico, diverso, artístico e tolerante. Esses dois pontos já tornam O Unicórnio do Sul e outras Lendas Poéticas uma obra altamente recomendável, mas existem mais fatores diferenciais: a inovação e leveza da forma poética, a delicada beleza das ilustrações, o lirismo das imagens literárias e artísticas, o grandioso resgate de lendas e estórias dispostos como generosa oferenda para deleitar e promover a interação, criatividade e reflexão sobre folclore, cultura, valores e virtudes em crianças de qualquer idade.
Fonte: Autografia
quatro poemas de José Couto.